quinta-feira, 7 de abril de 2011

O SONHO DE ÍCARO



Jorjão Borracheiro, dos que assistiram foi o único que aceitou falar pro Jornal Folha da Tarde:
_Tem complicados e complicados...
Enquanto limpava a mão na estopa molhada de Thinner:
_Tem gente que acha que o nome no SPC e Serasa é o fim do mundo. Tenho um amigo aqui, o Linguiça, que se ficar broxa, será um defunto insepulto. Conheço gente que não come sem carne, como tenho um cliente, que se tiver carne, não come. Esse menino não queria andar, então cismou de voar.
Jorjão falava do meu primo Boaventura...


Essa história passou-se em Corinto/MG. Boaventura nasceu feio. Essa foto não é dele, é que como era muito feio, o pai, envergonhado, comprou essa foto e dizia que era Boaventura, quando pequeno. Com três anos Jorge Boaventura já tinha barba a bigode e a calva já luzia no sol do meio dia. O pai de Boaventura, Armando das Frangas, diante da feiúra do filho pensou:

 _Vou ganhar dinheiro com esse menino.

E proclamou Boaventura um novo profeta. Todo dia Das Frangas levava o menino, montava um palquinho e Boaventura ficava ali, fazendo previsões:

_ No dia que o sol nascer e a luz tocar a areia do deserto, a velha com a boca escancarada cheia de dentes, esperando a morte chegar, (daí Raul tirou a letra daquela música) triunfará e no fim, o rei reinará.

Dito por um menino barbado e careca aquilo soava catastrófico e o povo queria saber mais. Aí Das Frangas passava a pequena cesta e recolhia a grana da feira. Boaventura fez sucesso assim uns dois dias, depois, com a rotatividade de aberrações, que comumente apareciam em Corinto, Boaventura foi ofuscado pela Samira, uma cartomante que trazia de volta o amor perdido em dois dias e em seguida, pelo bezerro de duas cabeças.



A vida de Boaventura foi assim, um acúmulo de complexos e humilhações, até o dia em que ele viu no céu de Corinto, um avião. Aquilo para ele foi a coisa mais linda que viu na vida. Potencializou todos os complexos adquiridos pela feiúra e jurou que ia voar. Trancou-se no porão de casa e ficou ali, com uma vasta literatura sobre aviação. Meses marcaram o calendário e nada do Boaventura sair do porão. Até que meu tio Das Frangas meteu o pé na porta, sorte de Boaventura que a sua invenção estava pronta, um par de asas!

Boaventura saiu do porão  com asas de estilo morcego amarradas nas costas:

_Tá tudo calculado, só falta testar.

Cidade pequena tem muito mais gente à toa e num instante formou-se uma turba. Nem na festa do Rosário formava-se uma procissão tão grande.  

Boaventura seguia na frente, só de zorbinha e o par de asas e atrás o povo. Boaventura olhava os prédios da cidade, procurando um ponto com altura ideal, até que avistou a torre da igreja.

Passou pela barbearia do Saul, pelo Hotel Soraya (toda cidade pequena tem o seu com esse nome) e ao passar pelo bar do Saúva, deu de cara com o nosso primo Roberval, poeta de quatro costados, figura consagrada pela academia Corintiana de Letras.

Roberval apenas disse: _ Eis o Sonho Ìcaro, voar, voar, subir, subir, ir por onde for, descer até o céu cair.

Poema que depois seria musicado por Biafra, com quem meu primo Roberval luta na Justiça pelos direito autorais, tem uns 30 anos.

Roberval pediu um conhaque, que só bebia nos momentos de grande inspiração e falou pro Saúva, que deixava Roberval beber de graça em troca de poemas para as namoradas:

_Traga papel...muito papel, uma Bic e mais um conhaque.

Passador alguns minutos, surge Boaventura no alto da torre da Igreja. O Povo aplaude, alguém grita: _Galôôô!

No que responde a outra metade: _ Zêroooo!

A coisa virou um misto de expectativa e show.

De repente...Boaventura molha um dedo na boca, levanta, mede a direção do vento, tira a cueca que enfiou nas bochechas da bunda, enquanto ele subiu as escadas apertadas de Igreja, abre os braços e ...pula!
_Um anjo! Disse novamente o primo Roberval dessa vez já rascunhando num guardanapo um poema.



Não voou meio metro e rachou no chão. Já febril e delirante, Boaventura teve uma visão, uma cadeira rodas no meio de um deserto, foi quando sentiu uma certa paz, um êxtase, olhou pra baixo e um cachorrinho estava a lamber-lhe as gônadas. 

Boaventura nunca mais falou, andou ou fez outro movimento, passou o resto da vida entrevado numa cama, para se comunicar, piscava uma vez para sim e duas, para não.
Lembro-me de ainda pequeno ter ido visitá-lo e na minha curiosidade inocente de criança, olhei o primo tolhido daquela forma e perguntei:

_Será que doeu?

No que ele piscou uma vez, com os olhos cheinhos de lágrimas

4 comentários:

  1. Muito boa, como sempre!
    E ainda ganhou uma estadia grátis no Hotel Soraya, de Corinto.
    Com pouco tempo de blog já colhe os frutos do merchan. rsrsrs

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  2. Deve vir daí essa sua necessidade insana de voar de helicóptero, certamente alguma coisa genética

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  3. Borreia,

    Vc. consegue se superar cada vez que escreve. Morro de rir e fico imaginando seus personagens e de vez em quando, que põe a foto, riu ainda mais.

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  4. Como sempre, excelente!
    Impressionante como consegue tanta inspiração...
    Continue assim

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